quinta-feira, 28 de outubro de 2010

E quando positiva demais?

É certo de que passamos por infernos nesta vida, ter abismos não é privilegio de ninguém. Sofrer é ruim, sim, mas não deveria ser tão obsceno. É um pressuposto básico da vida. E que corpo estas experiências são capazes de produzir? Podemos reduzir os seres vivos até suas células, unidades de vida, unidades de excitação cuja expressão se da por meio de dois movimentos, contração e expansão. Os organismos, para que sejam capazes de explorar o ambiente eficientemente, se expandem em sua direção, e ao se depararem com algum estímulo aversivo, se contraem, e ao se sentirem livres da ameaça são capazes de voltarem a se expandir. Muito simples e seria lindo se as coisas funcionassem sempre dessa forma, mas como humanos, temos uma característica que influencia muito neste movimento, a consciência. “A capacidade de fazer com que o instante dure em experiência” já diria o Nelson aos seus calouros. E oque isto significa neste post? Significa que uma vez que determinada ameaça nos faça contrair, nos produza um corpo defensivo, não há garantias de que voltemos a nos expandir uma vez que a ameaça deixe de existir. As vezes é muito difícil nos livrarmos dessas formas que em determinado momento nos foi tão útil mas agora só nos atrapalha. As circunstâncias mudaram, o ambiente mudou, este corpo já não serve mais, precisamos viver a morte destas formas para que possamos produzir um corpo novo que seja capaz de autonomia, com o mínimo de determinismos e automatismos, um corpo que seja capaz de viver. Pois ao se defender do sofrimento nos defendemos também da vida, um corpo contraído perde sua capacidade de explorar o ambiente, o medo de sentir emoções que consideramos ruins nos defende também de sentirmos as emoções boas. Nossa capacidade de satisfação fica prejudica assim como a capacidade de se entregar. O gato escaldado tem medo de agua fria né?

Muitas concepções minhas mudaram depois dos últimos infernos que vivi, todas estas opiniões são tão transitórias não é? Portanto mesmo o que eu disser aqui não está livre desta transitoriedade, mas é minha aposta neste momento. Mudei minhas concepções sobre sofrimento e felicidade. Sofrer perdeu completamente sua obscenidade, percebi que ao sofrer podemos “ficar com medo de água fria” se defendendo de tudo e de todos. Um medo que leva a tentar controlar tudo, sempre preocupado, sufocando a potência de viver. Mas também existe a possibilidade de positivarmos este sofrimento, sermos capazes de extrair dele o máximo possível de potência, um sofrimento que te leve ao movimento me parece muito mais válido do que uma felicidade parada, contraída, simplesmente um “acomodar com o que incomoda”. Uma felicidade que se baseie em se privar da dor, se priva também de todas as outras intensidades. Uma vida média? Não é pra mim, eu quero a intensidade dos afetos não importam quais sejam. “A tragédia em cena já não me basta!”

Acho que encarar estes abismos era o que eu precisava para deixar de temê-los, poderia ter ficado depressivo, machucado, mas não. Foi bom pra descobrir o que sou capaz de bancar, o que somos capazes de bancar. Estou sendo capaz de abandonar formas obsoletas para produzir um novo corpo, “sob dez mil aspectos diversos”. E a cada dia que passa eu percebo que vale a pena pagar o preço da intensidade, o preço de não permanecer em contração e ser capaz de se entregar, afirmar a vida e habitar seus sentidos. Acho que esta é uma forma possível de se fazer da própria vida uma obra de arte.



Pra finalizar um poema do Artaud que inspira bastante....



"Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta que eu o diga
Como só eu o sei dizer
e imediatamente
hão de ver meu corpo
atual,
voar em pedaços
e se juntar
sob dez mil aspectos
diversos.
Um novo corpo
no qual nunca mais
poderão esquecer.

Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,
minha mãe,
e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!

Estou sempre morto.
Mas um vivo morto,
Um morto vivo.
Sou um morto

Sempre vivo.
A tragédia em cena já não me basta.
Quero transportá-la para minha vida.

Eu represento totalmente a minha vida.

Onde as pessoas procuram criar obras
de arte, eu pretendo mostrar o meu
espírito.
Não concebo uma obra de arte
dissociada da vida.

Eu, o senhor Antonin Artaud,
nascido em Marseille
no dia 4 de setembro de 1896,
eu sou Satã e eu sou Deus,
e pouco me importa a Virgem Maria.